Comentário do Módulo 7

Tema Geral: Gênesis

A aliança com Abraão

Autor: Wilian S. Cardoso

Dentro de toda a história de Abraão (Gn 12–25), podemos dizer que a parte central de seu relato se encontra entre os capítulos 15 a 17, uma vez que nesses capítulos se concentram as mais veementes alianças de Deus com Abraão.

Algum tempo depois dos eventos dramáticos do capítulo 14, Deus voltou a falar com Abraão. Especificamente, somos informados que a palavra do Senhor veio a Abraão em uma visão (makhaze). Essa linguagem é muitas vezes usada na Bíblia para descrever o relacionamento entre Deus e um profeta. E da mesma forma que acontece em outras visões proféticas, esse encontro envolveu imagens impactantes.

As primeiras palavras de Deus a Abraão são de segurança: “Não tenha medo […] Eu sou o seu escudo, e lhe darei uma grande recompensa”. Os versículos seguintes deixam claro que realmente Abraão tinha dúvidas de como Deus cumpriria as grandes promessas que ele tinha feito. Deus trabalhou com as emoções de Abraão: não há necessidade de receio, Eu servirei como seu escudo, sua proteção contra os problemas. A recompensa virá e a espera valerá a pena. Contudo, uma vez que Abraão foi chamado por Deus aos 75 anos (Gn 12:4) e ainda não tinha filhos, a preocupação dele é compreensível. Abraão não estava necessariamente questionando a capacidade de Deus, mas estava pedindo a Ele mais detalhes de como planejava cumprir Seus propósitos.

Aparentemente, Abraão parecia estar mais preocupado com a realização da promessa do que o próprio Deus. Afinal, o cumprimento da promessa colocava em jogo a possibilidade de restauração da criação ao seu formato original. Além disso, seu nome Abrão significa “pai exaltado”, mas ele ainda não havia se tornado pai e a esterilidade de Sara, somando-se à idade avançada de ambos, tornava isso cada vez mais improvável. Estranhamente, parece que Abraão acreditava na possiblidade de Deus miraculosamente tornar Sara fértil, mas, por outro lado, Ele não conseguiria isso se ambos fossem velhos.

A resposta de Abraão revelou ainda mais sua ansiedade para que tudo fosse realizado o mais iminentemente possível – era uma luta contra o tempo e os efeitos que ele causa. Ele havia buscado uma alternativa para adquirir um herdeiro e tornar a promessa divina uma realidade em sua vida – por meio de Eliézer, seu servo mais fiel. Uma porção de tabletes encontrados na antiga cidade de Nuzi, ao norte do atual Iraque, nos ajudam a entender o que Abraão estava tentando fazer. Seus escritos revelam que, sob a lei hurrita, o herdeiro de um homem poderia ser seu filho natural, um herdeiro direto, ou, na ausência um filho natural, um herdeiro indireto, isto é, um estrangeiro ou servo adotado para esse propósito. Neste último caso, o herdeiro adotado era obrigado a atender as necessidades físicas de seus “pais” durante sua vida a fim de que, após a morte deles, tivesse direito à herança.

A réplica divina é uma reafirmação de Sua promessa dita inicialmente: “Você e sua esposa conceberão um filho e este será o seu herdeiro”. Diferente da abordagem inicial, agora, Deus procurou aliviar a ansiedade de Abraão não apenas por palavras, mas com ações expressas em um ritual. De modo impressionante, da mesma forma que Abraão usou um costume de sua cultura local a fim de ocasionar o cumprimento da promessa – a adoção de um servo, Deus fez uso do mesmo recurso cultural a fim de garantir a Abraão que suas palavras eram reais e que ele realmente seria pai.

Documentos de várias regiões do Antigo Oriente Médio, datados do 2º milênio a.C., revelam que havia um costume entre os povos daquele período de fazer um tratado de aliança que era expresso por um ritual de automaldição, isto é, dois pactuantes selecionavam animais, os quais eram partidos e distribuídos pelo chão, e os contratantes circulariam ao redor dos pedaços jurando que, se não cumprissem sua parte no acordo, seu destino devia se tornar o mesmo daqueles animais. Veja, por exemplo, um trecho do tratado de Alalakh: “Abban declarou o juramento dos deuses a Yarim-lim e cortou o pescoço de uma ovelha, dizendo: ‘[Assim seja comigo] se eu tomar de volta o que te dei’”. 

Em outras palavras, Deus respondeu na linguagem de Abraão. Deus usou uma ideia familiar para Abraão, visivelmente concreta, para tornar claro para ele que, se Ele não cumprisse Sua promessa, Seu destino devia se tornar como o daqueles animais mortos. O mais curioso e chocante nisso é que, nesse episódio, somente Deus foi descrito como Aquele que andou pelos cadáveres declarando a automaldição.

É quase como se nos dias de hoje Deus nos levasse até um tabelionato a fim de que nossas assinaturas fossem reconhecidas, de modo que, caso uma parte não fosse fiel a qualquer das cláusulas contratuais, a outra teria o direito legal de recorrer à execução das sanções previstas na lei. É claro que o texto bíblico é muitas vezes mais impactante do que uma simples quebra de contrato moderno que levaria ao pagamento de uma multa ou à prisão. O fato é que, por mais que seja um absurdo pensar que Deus pudesse morrer, é tão absurdo quanto pensar que Ele não seria capaz de cumprir Sua palavra. 

No fim, Deus reacendeu a fé em Abraão e o reanimou, mas por quanto tempo? Qualquer pessoa que já teve uma experiência com Deus, sabe que infelizmente temos uma tendência natural, não somente com Deus, mas com tudo, em nos concentrar nos sentimentos negativos mais do que nos positivos. Foi por isso que a chama da certeza de Abraão se tornou mais fraca e novamente ele buscou um subterfúgio humano para cumprir a promessa divina.

Mais uma vez, os documentos de Nuzi são elucidativos. Além da adoção, o concubinato era outro método para prover um herdeiro no caso de um casamento sem filhos. Assim, um tablete de Nuzi declara: “Kelim-ninu (a noiva) foi dada em casamento a Shennima (o noivo) […] Se Kelim-ninu não tiver filhos, Kelim-ninu deverá adquirir uma mulher da terra de Lulu (ou seja, uma escrava) como esposa para Shennima”. 

Novamente, Abraão precisou ser animado, e do mesmo jeito que Deus havia respondido antes, Ele respondeu então. A circuncisão era um procedimento comum em muitos povos antigos. A maioria dos relatos do Antigo Oriente Médio coloca a circuncisão na época da puberdade, seja para preparar os jovens para o casamento ou, como no Egito, para o sacerdócio. Ou seja, a circuncisão era praticada em jovens no exato momento em que eles tinham condições de contrair casamento, já que estavam prontos para a atividade sexual e, consequentemente, poderiam gerar filhos. A estranheza do pedido divino, portanto (e certamente isso foi notório para Abraão e qualquer pessoa que ouvisse falar disso na época), está no fato de a circuncisão ter que ser executada em um recém-nascido. Isso porque o que Deus estava ensinando a Abraão, e hoje por extensão a todos nós, é que a capacidade de cumprir a promessa não dependia dele, visto que um bebê jamais poderia gerar outro ser, quem dirá uma nação; essa capacidade vem exclusivamente do poder de Deus. Assim, sempre que Abraão visse a cicatriz em seu corpo, ele se lembraria disso.

Sendo um sinal da aliança, a circuncisão faz paralelo com o sinal do arco-íris da aliança com Noé. Enquanto o arco-íris foi um pacto com toda a Terra, a circuncisão foi uma aliança com o homem. Ambos os sinais representavam a mesma coisa: a capacidade divina de manter e cumprir Sua palavra. Ou seja, em ambos os casos, o cumprimento da aliança dependia exclusivamente de Deus, o homem era incapaz de cumprir a promessa. Dele só era exigida a fé.

Em outras palavras, o que o relato bíblico está apresentando são episódios da vida de Abraão que intercalam pelo menos 4 situações: sua fé, sua falta de fé, o reavivamento da fé por meio da ação de Deus, e sua natureza bondosa em tratar o próximo e se preocupar com ele. Ou seja, o texto intercala eventos que descrevem: (1º) que Abraão era um ser humano normal como eu e você; ele acreditava, mas em determinados momentos, usava seus próprios conceitos e sua força para realizar os planos que pertenciam a Deus; (2º) suas falhas não foram um problema para Deus, apesar de muitos problemas que surgiram na vida de Abraão como frutos de suas próprias escolhas e lapsos de fé. Deus estava disposto a moldar seu caráter e restaurar Sua imagem nele, visto que o patriarca possuía um coração abdicado e voluntário para fazer a vontade de Deus e cuidar dos outros ao seu redor. Abraão não foi mais especial do que você e eu somos para Deus. Apesar de suas falhas e quedas, ele vivia pela fé, a mesma atitude que Deus espera de todos os seus filhos.

Na verdade, voltando à história da “aliança dos pedaços” (Gn 15), Abraão não passou pelos pedaços porque a humanidade não tem capacidade de cumprir a aliança, pois ela sempre falhará. Logo, ele sempre deveria morrer como um animal despedaçado. Por isso, Deus, que nunca falha, assumiu nossa automaldição sobre Si mesmo, para que o destino que merecemos não seja o destino que receberemos. A nós cabe apenas acreditar na promessa e, pela fé, aguardar para ver Deus agindo e cumprindo Suas maravilhosas palavras de bênção e salvação para nós.

Referências:

(1) WEEKS, Noel. Admonition and Curse : the ancient Near Eastern treaty/covenant form as a problem in inter-cultural relationships. Londres: T&T Clark, 2004, p. 116.

(2) LONGMAN III, Tremper. Como Ler Gênesis . São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 160.  

(3) SETERS, John van. “The Problem of Childlessness in Near Eastern Law and the Patriarchs of Israel”. In: Journal of Biblical Literature , v. 87, nº 4, Dez. 1968, p. 404.