Comentário do Módulo 4

Tema Geral: Gênesis

O Dilúvio

Autor: Wilian S. Cardoso

Escrever sobre o Dilúvio não é uma tarefa tão fácil, porque há uma profusão de literatura sobre esse tema, o que torna difícil saber sobre o que falar. Além disso, uma vez que há tantos escritos relacionados a esse tópico, faz parecer redundante a produção de mais um comentário sobre o tema. Seja como for, meu intuito é destacar aqui três perspectivas que podem soar de forma singular, mas, ao mesmo tempo, relevante.

O Dilúvio da perspectiva de Satanás

Ao pensarmos nas palavras de Gênesis 3:15, lembramos da promessa divina e de Sua misericórdia. No entanto, às vezes, somos inclinados a esquecer que essas palavras, na verdade, foram primeiramente destinadas à serpente, a saber – Satanás. E, pensando sobre isso, poderíamos questionar que, se essas palavras causaram um impacto profundo sobre os seres humanos, não teriam elas causado igualmente algum tipo de reação sobre o inimigo de Deus? Afinal, sua sentença de morte foi decretada ali e algum tipo de resposta ou defesa deveria ser esperada naturalmente de qualquer ser vivo prestes a perder a vida. E, claramente, os eventos que se seguem apontam que sim. De fato, houve uma reação satânica ante a realidade dessa promessa. É possível que Satanás tivesse determinado que ele não permitiria que isso ocorresse. Em outras palavras, ele faria o possível para impedir o cumprimento desse evento escatológico. E o primeiro plano que ele elaborou, obviamente, foi obliterar a existência da potencial descendência ameaçadora. É precisamente isso que vemos em Gênesis 4, através da morte de Abel pelas mãos de Caim. Ou seja, uma vez que o Descendente não existisse, a promessa jamais poderia ser cumprida. O estabelecimento de uma cidade por parte de Caim (4:17), seguido do relato sobre sua genealogia, que apresenta seus descendentes que têm o domínio de técnicas especiais (4:20-22), cria um efeito de suspense literário sugerindo que aparentemente o mal estivesse a triunfar. Contudo, o capítulo termina com ares de esperança, ao declarar com apenas 2 versos que uma nova descendência surge e o nome de Deus começa a ser invocado (Gn 4:25-26).

O plano diabólico é frustrado e, obviamente, continuar com ele teria sido uma ideia tola, pois sempre que um descendente fosse destruído, um novo surgiria e assim ad infinitum. Satanás parece que partiu para um plano B. No lugar de destruir fisicamente a descendência, melhor seria, em vida, corromper todos os descendentes, unindo-os em casamento e assim minando sua moralidade pelo afastamento de Deus (Gn 6:1, 2). Dessa forma, toda a genealogia dos adoradores de Deus (Gn 5) seria extinta. E é a partir disso que a história do Dilúvio começa.

A genealogia do capítulo 5 relata que os seres humanos possuíam uma extensa longevidade, sugerindo que eles podiam ter centenas de filhos ao longo da vida (5:4, 7, etc.). Isso implica que a quantidade de pessoas habitando na Terra possivelmente fosse gigantesca (6:1). Contudo, desse mar de pessoas, parece que somente um homem permanecia íntegro diante de Deus – Noé (6:8, 9). O texto anuncia que o plano satânico de corromper toda descendência existente e assim impedir a realização das palavras divinas de Gênesis 3:15 está prestes a se tornar perfeito (6:12). A corrupção de Noé implicaria a perdição de toda a sua família e o fim de toda esperança. Mas antes que isso pudesse se tornar uma realidade, nos minutos finais do conflito, Deus apareceu com um plano inverso ao de Satanás. Se primeiro seu plano foi de morte (Abel), e depois a corrupção da vida (habitantes da Terra), a resposta divina foi primeiro a geração de vida (Sete). Porém, agora, o plano foi a destruição dela (habitantes da Terra). A tristeza divina (6:6), portanto, se deve ao fato da decisão que Ele precisava tomar a fim de frustrar o plano satânico, a saber, destruir a criação. No entanto, diferentemente das ações implacáveis de Satanás, Deus ofereceu misericórdia antes de executar qualquer juízo (6:3).

 

O Dilúvio da perspectiva da água

Esse mesmo contraste de ações é igualmente percebido no desenvolvimento de toda a execução do Dilúvio. Vendo a extrema corrupção da Terra, Deus anunciou a Noé que Ele causaria um Dilúvio de águas sobre ela (6:17).

A água é um elemento fundamental da criação (Gn 1:6-9). E, na visão bíblica, o controle das águas é prerrogativa exclusiva de Deus (Jó 9:8; 38:16; Sl 77:20; Hc 3:15; Is 51:9, 10). 

Depois da criação em Gênesis 1, a palavra hebraica mayim (“água”) ocorre novamente apenas na narrativa do Dilúvio (Gn 6–9). Esse elemento da criação aparece agora como a figura mais importante no relato do processo de “descriação” do planeta. Como no início, quando tudo veio da água, outra vez o mesmo elemento é usado por Deus, mas aqui para reverter todo o processo de criação. Essa inversão é percebida por meio do movimento da palavra “água” no fluxo da história. A água cai (7:6, 7, 10) e há uma unificação das águas de cima com as águas de baixo (7:11), que anteriormente haviam sido separadas (1:6-8). Desse modo, a água sobe cobrindo toda a superfície da terra, restaurando assim o planeta à sua condição caótica de pré-criação de caos aquático (7:17-20, 24; cf. 1:2). 

Em seguida, o processo criativo é reiniciado em etapas muito semelhantes às descritas em Gênesis 1:

  1. um vento da parte de Deus que passa sobre as águas (8:1);
  2. as águas diminuem e a terra aparece (8:3, 5);
  3. animais voadores retornam ao seu habitat (8:7-11);
  4. a vegetação floresce novamente (8:11).

É significativo que a figura da água ocorra em relação aos mesmos elementos criados em Gênesis 1 e sirva como um tipo de fio que costura e conecta os dois textos, levando-nos de volta à criação.

Assim, a criação e o Dilúvio estão conectados por meio de paralelos e padrões em comum. E a imagem da água parece executar um papel importante em revelar tais paralelos. Por meio deles, algumas ideias comuns e opostas podem ser percebidas. A água como elemento-chave e os mesmos padrões de ideias são repetidos também em outras histórias, principalmente aquelas que falam sobre os grandes feitos divinos, tais como o êxodo e o retorno da Babilônia.

Conceitos contrastantes também podem ser entendidos na imagem da água servindo como o instrumento da criação, assim como de destruição, os quais, no Dilúvio, são metaforizados nas ideias de salvação e julgamento. Pode-se ver uma imagem da justiça divina relacionada à água – aqueles que são dignos recebem Sua misericórdia e os indignos Sua ira através do uso do mesmo instrumento. Então, o que é uma recriação ou um novo começo para alguns, é destruição e fim para outros.

O Dilúvio da perspectiva do arco

Após o fim dessa tragédia global, Deus anuncia que colocou Seu arco sobre as nuvens (9:13). A palavra hebraica qeshet (“arco”) pode se referir ao arco-íris, mas primariamente significa um arco de flechas. Esse é o “sinal” que as pessoas podem ver diretamente sempre que houver uma manifestação da água a partir dos céus. A linguagem usada, contudo, pretende sugerir o pendurar simbólico de uma arma de batalha ao fim de uma guerra, como prenúncio de paz. Deus estava assumindo a responsabilidade de criar o arco-íris como um símbolo de Sua promessa a toda a criação, de nunca mais enviar um dilúvio global. Embora o arco-íris seja um fenômeno científico e meteorológico, Gênesis afirma que Deus é responsável por todos os fenômenos universais. Deus escolheu fazer com que o arco-íris funcionasse como um símbolo de Sua promessa de aliança. O arco de Deus nas nuvens é um lembrete eterno de Sua promessa de graça, misericórdia e paz para toda a humanidade.

Ainda que tenha sido uma decisão extremamente difícil e dura, o Dilúvio trouxe salvação para a continuidade da promessa de Gênesis 3:15 e, consequentemente, para a renovação da esperança de que a palavra de Deus é fiel, invencível e inexorável. Nem Satanás nem qualquer criatura pode interferir ou sobrepor seus planos pessoais aos desígnios divinos. As águas da criação ao Dilúvio, do Mar Vermelho ao batismo, são instrumentos de libertação e de criação de uma nova realidade para todos aqueles que aceitam viver pela palavra de Deus. Além disso, toda a Sua justiça é sempre temperada com misericórdia que pode ser sentida nas marcas da aliança que Ele deixou pela Terra: o sábado, o arco-íris, a circuncisão, a lei, etc., a fim de que não nos esqueçamos de Seu sublime amor e cuidado por nós, e de que Ele faz guerra contra o pecado e o mal para que a paz seja o alento final de todo aquele que confia no Seu plano.

Referências:

(1) BROWN, Sherri. “Water Imagery and the Power and Presence of God in the Gospel of John”, in Theology Today , [s.l.], v. 72, n. 3, Out. 2015, p. 290. (2) PAULIEN, Jon. The Deep Things of God . Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004, p. 35.